sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Sistema Inquisitório e Sistema Acusatório: contornos históricos e críticos


Historicamente, o sistema inquisitório nasce na Roma Imperial, mormente com os processamentos ex officio pelos delicta publica e os delitos laesa maiestatis[1], momento onde surge a embrião da palavra jurisdição - iurisdictio designava a iniciação ex officio do processo pelo julgador[2].
Todavia, adverte Jacinto COUTINHO[3], que o modelo que atualmente chamamos de inquisitório, tem sua forma “pura” no Santo Ofício, ou, Tribunal da Inquisição, como uma forma de repressão as doutrinas hereges.
Voltando a história, lembra o professor paranaense que, no final do Império Romano, concomitante a formação dos feudos, o imperador Constantino converte-se a religião Cristã fazendo com que a Igreja Católica se tornasse a mais importante aliada do Poder.
Neste momento, mesmo com a posterior dominação dos povos bárbaros e a recepção do Direito Romano, o Processo Penal segue com suas mesmas estruturas: havia os Juízos de Deus, pelos juramentos, duelos e as ordálias.
Com efeito, aproximadamente a partir do ano 1000, com as caravanas de mercadores e o nascimento das cidades e dos burgos, o Estado (agora jungido a Igreja) começa a perder poder, uma vez que a economia acaba por sair do seu controle com estas novas atividades econômicas. Os mercadores daquela época, em que pese não serem proprietários de qualquer pedaço de terra, detinham um poderio financeiro nascido do comércio entre os povos.
Com este declínio de poder, o agora Estado/Igreja, passa a adotar medidas drásticas para combater tal fato, mas sob a desculpa do combate a heresia dos povos não-cristãos.
O marco efetivo do início da Inquisição é incerto, mas a primeira manifestação da Igreja para contornar o seu declínio deu-se com o Papa Inocêncio III, em 1199, quando exarou a Bula Vergentis in senium, ordenando a cruzada contra os Albigenses, mas tendo como escopo real os saques e o enfraquecimento das forças opostas a Igreja que de tal empreitada adviria.
Após o extermínio a mão armada dos Albigineses, como refere António José SARAIVA[4], em 1229, do Concílio Provincial de Tolose, em França, nasce a figura do Inquisidor, que não eram mais bispos, e sim membros da Ordem de Santo Domingos, ou da Ordem dos Pregadores, fundada especialmente para o combate as heresias.
Em 1231 o Papa Gregório IX, após o Imperador Frederico III ter também lançado editos de perseguição a hereges, exara a Constitucio Excomunianus e, em 1245 com o Concílio Provincial de Béziers, estabelecem-se as principais regras do processo inquisitorial[5] (sobre as quais Joana d’Arc foi condenada e morta, por exemplo), culminando com a Bula Ad extirpanda de Inocêncio IV em 1252 que estabelecia a tortura como meio de prova.
Está então definitivamente estruturado o maior engenho jurídico que o mundo conheceu, como assinala Jacinto COUTINHO[6], pois duraria mais de 700 anos, “haciendo de la doctrina del proceso penal uma especie de ciencia de los horrores”[7] .
Neste momento o Sistema Inquisitório toma uma forma pura, como citado anteriormente, isto, pois, diversos ordenamentos jurídicos anteriores, contemporâneos e até mesmo posteriores a Inquisição da Igreja Católica eram tão cruéis quanto, mas não somaram tantas características inquisitivas como as que são apontadas no Santo Ofício - aqui se encontra o núcleo fundante de tal Sistema: o julgador com poderes instrutórios e de gestão da prova.
A forma pura referida por COUTINHO, pois, diz respeito não somente as formas malignas de se obter a verdade pela tortura, nem da inexistência de separação entre acusador e julgador (pondo por terra o actum trium personarum de Búlgaro[8]), mas por dar ao órgão encarregado de julgar a capacidade de buscar as suas provas.
O Inquisidor investiga, “procede”, colhe as provas (confissão pela tortura, oitiva de testemunhas que julga importante) e decide, buscando sempre a verdade absoluta revelada para a salvação[9].
Isto porque, conforme Jacinto COUTINHO[10]

“se o processo tem por finalidade, entre outras, a reconstituição de um fato de um fato pretérito, o crime, mormente através da instrução probatória, a gestão da prova, na forma pela qual ela é realizada, identifica o princípio unificador.
Com efeito, pode-se dizer que o sistema inquisitório, regido pelo princípio inquisitivo, tem como principal característica a extrema concentração de poder nas mãos do julgador, o qual detém a gestão da prova. Aqui, o acusado é mero objeto de investigação e tido como detentor da verdade de um crime, da qual deverá dar contas ao inquisidor.”

No Brasil, dada a influência portuguesa e espanhola, o Tribunal do Santo Ofício vai aparecer realmente em 1572 permanecendo ativo até a independência. Grande responsável por este largo período de atrocidades foram as Ordenações Afonsinas (1446), Manuelinas (1521), mas principalmente as Ordenações Filipinas (1603), onde crime e pecado caminham juntos, numa clara ausência de divisão entre Direito, moral e religião[11].
Em local diametralmente oposto ao sistema inquisitório, encontra-se o acusatório, que tem suas origens na Grécia e na Roma Republicana (mas aqui de caráter predominantemente privado), onde tanto o juiz como o juízo tem uma natureza arbitral[12].
Concomitantemente a um período inquisitivo que passava a então decadente Roma Imperial, em Inglaterra, diferentemente de grande parte da Europa, mesmo tendo sido dominada pelo Império Romano, “o processo de aculturação foi pouco intenso, principalmente no tocante à assimilação do Direito das instituições jurídicas”[13].
Da história jurídica anglo-saxônica, interessa-nos aqui a que se iniciou com a conquista de Guilherme da Normandia, em 1066. Neste período iniciou-se uma luta entre os barões e os reis, que determinou a reestruturação do Direito então vigente[14].
Estas disputas perduraram até o século XII, onde, com Henrique II, em 1154 até 1189, foi organizada a justiça daquelas localidades da maneira mais próxima ao que se conhece hoje por common law.
Neste período, qualquer pessoa que obsequiasse justiça poderia pedi-la ao Rei que delegava esta função a um Chanceler, o qual poderia exarar uma ordem, chamada writ (do latim breve e do francês bref - daí o “apelido” dado ao habeas corpus e ao mandado de segurança), dirigida a um Sheriff ou a um senhor, para que esta se fizesse cumprir – sob pena de desobediência.
Daí seguiu-se uma sucessão de inovações com o Trial by Jury, Grand Jury, Petty Jury, entre outros institutos e instituições. Decorrente disto foi a centralização de poder no Rei absolutista, fazendo com que os barões e conseqüentemente a Igreja perdessem espaço, a ponto de Henrique II ser ameaçado de excomunhão após a morte do bispo de Canterbury Thomas Becket[15].
Esta crise deságua em João Sem-Terra, usurpador do trono de Ricardo Coração de Leão, sendo, então, sucessor ilegítimo (para alguns) de Henrique II, que ao perder feudos da Inglaterra em França, somado ao não reconhecimento do bispo de Canterbury, Estevan Langton, é excomungado pelo Papa, terminando derrotado em uma cadeia de batalhas, sendo submetido à vontade papal.
Diante de tal situação, João Sem-Terra, acordando com os barões ingleses, por razões óbvias,es ra constitucionalismom os bar de nrique II ser ameaçado de excomunham aegava esta funç promulgou a Magna Charta Libertatum, inexoravelmente vinculada a história do constitucionalismo, onde conferia direitos e garantias a todos (principalmente aos barões), que anteriormente viviam sob os auspícios de um soberano absoluto, ficando assentado aí um dos principais dispositivos liberais:

“Nenhum homem livre será preso ou despojado ou colocado fora da lei ou exilado, e não se lhe fará nenhum mal, a não ser em virtude de um julgamento legal dos seus pares ou em virtude de lei do pais[16].”

Como refere COUTINHO[17], do “conflito de forças, entre barões e o rei, parece ter levado vantagem o povo, até assumir a consciência de ser o efetivo detentor do poder, pelo menos para efeito de não ter violado o seu espaço de intimidade, com uma cultura de respeito a cidadania”.
Então o réu, no processo penal, que no sistema inquisitivo era tratado como mero objeto de investigação, objeto do processo, passa a ser pessoa de direitos e deveres, um cidadão e, por isso, deve necessariamente ter suas garantias individuais resguardadas contra todo e qualquer poder despótico – aqui inicia-se o sistema acusatório de processo penal.
O sistema acusatório inglês tornou-se assim um processo de partes, não competindo ao julgador qualquer iniciativa probatória, pondo-se em uma situação eqüidistante das partes, num verdadeiro actum trium personarum.
Por fim, ainda que de pouco interesse para nossos estudos, mas inarredável quando se fala em sistemas processuais, é o dito sistema misto, que, como se verá, sequer um sistema processual é.
O Code d’instruction criminalle, de Napoleão Bonaparte, produzido 1808, mas em vigor a partir 1º de janeiro de 1811, é tido como primeiro Código a adotar do tal sistema misto[18], sendo, na verdade um “monstruo nacido de la unión del proceso acusatorio con inquisitivo”[19], isto porque prescreveria uma primeira fase de caráter inquisitivo (ou seja, escrita, secreta, sem contraditório, etc.) e uma segunda fase acusatória, que se representava, como refere FERRAJOLI, “una mera repetición o escenificación de la primera fase”.[20]
As conseqüências deste dito sistema processual foram trágicas, mas reproduzidas em toda Europa: em Holanda e Bélgica em 1808, Espanha em 1882, Portugal em 1832, Prúsia em 1846, mas influenciou principalmente as legislações processuais penais da Itália nos Códigos de 1806, no Código borbónico de 1819, no de Parma em 1820, toscano de 1838, no piamontes de 1847 e 1857 e, principalmente, no Código Rocco de 1930[21].
O Brasil não passou incólume de tal equívoco malicioso, o atual Código de Processo Penal, assinado pelo então Ministro da Justiça Francisco Campos, é uma cópia mal feita do Código Rocco[22] – de Mussoline – expressamente declarado em sua Exposição de Motivos.
Diferentemente de grande parcela da doutrina processual pena brasileira, cremos que não há sistema misto pelo simples fato de que a primeira fase dita inquisitória não é processo, é investigação preliminar exercida pela polícia judiciária, ademais, não deve ser inquisitória, posto que a Constituição Federal determina que aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório, a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.
Agregado a isto, recordando mais uma vez as lições de COUTINHO[23], o que determina um sistema processual penal é a existência de poderes instrutórios conferidos ao julgador, “não há - e nem pode haver – um princípio misto, o que, por evidente, desfigura o dito sistema”.
Tal e qual a forma como está disposto no Código de Processo Penal, bem como, com a previsão da Policia Judiciária pela Constituição Federal, o chamado inquérito policial (investigação preliminar) ainda é administrativo, devendo, contudo, subordinar determinadas investidas a direitos individuais a partir de ordem judicial e, de igual forma, como todos os procedimentos administrativos, ao agir de modo ilegal ou por abuso de poder, dá ao Poder Judiciário a possibilidade de intervir em seus atos para que cesse a ilegalidade ou abuso de poder – não que isto seja uma questão tecnicamente “correta” ou uma boa redação legislativa, mas, a nosso ver, não encontra óbice na Constituição Federal.
Por não ser processo penal, em sentido estrito, a fase de investigação preliminar, portanto, não é um sistema de Direito Processual Penal.
Lembra Aury LOPES JR.[24], que o dito sistema misto, elaborado por Napoleão, um tirano, serve para tais regimes, mas não aos Democráticos como o adotado pelo Brasil em sua Constituição. “Uma mistura de tal natureza (inquisitório e acusatório) é irracional, e a prática desaconselha tal mescla”, principalmente porque é corrente a suposta não contaminação do inquérito policial na fase processual, decorrente de “todo um exercício imunizatório (ou melhor, uma fraude de etiquetas) para justificar uma condenação que, na verdade, está calcada nos elementos colhidos na inquisição”.
[1] FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón...p. 565.
[2] FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón... p. 637.
[3] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O papel do novo juiz no processo penal. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. (org.) Crítica a Teoria Geral do Direito Processual Penal.. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. P.18.
[4] SARAIVA, António José. A inquisição Portuguesa. Lisboa: Publicações Europa-América, 1964. p. 11.
[5] Sobre a estrutura do processo da Inquisição da Igreja Católica, cabe aqui transcrever uma interessante passagem de SALDANHA: “o regimento de D. Francisco de Castro – que vigorou de 1640 a 1774 -, no número 9, do titulo 2º, do Livro I, previa a existência nas “mesas” das quatro inquisições de uma série de obras fundamentais onde, a par da Bíblia, dos textos de Direito Canônico e Civil e das Ordenações do Reino, “com seu Repertório”, se alinhavam também o célebre Directorium Inquisitorum de Nicolau Eymerich e o tratado De Catholicis Institutionibus de Diego de Simancas”. Havia, então, desde aquela época, uma cultura manualesca que ensinava os inquisidores como proceder contra os hereges, tal e qual os Manuais (igualmente inquisidores, em grande parte) ensinam como proceder contra os delinqüentes. (SALDANHA, António Vasconcelos de. Do regimento da inquisição portuguesa: notas sobre fontes de direito. In: NOVINSKY, Anita. CARNEIRO, Luzia. Inquisição: ensaios sobre mentalidade, heresia e arte.São Paulo: EDUSP, 1992. p. 103)
[6] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O papel do novo juiz no processo penal... p. 18.
[7] FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón...p. 566..
[8] Estruturada por este, mas desenvolvida por Oscar von Bülow na obra La teoria de las excepciones dilatórias y los pressupuestos procesales, originalmente publicada em 1868.
[9] BOFF, Leonardo. Em prefácio a obra de Nicolau EYMERICH, Directorium Inquisitorum – Manual dos Inquisidores, escrito originariamente em 1376, e revisto e ampliado em 1578 por Fancisco de La Peña (Trad. Maria José Lopes da Silva. Brasília: Edunb, 1993).
[10] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Introdução aos princípios gerais de Direito Processual Penal. In: Revista de Estudos Criminais. Ano 1. Nº 1. Sapucaia do Sul: NotaDez, 2001. p. 28. Neste mesmo sentido encontramos FERRAJOLI, dizendo que “llmaré de inquisitivo a todo sistema procesal donde el juez procede de oficio a la búsqueda, recolocacíon y valaración de las pruebas” FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón...p. 564.
[11] CARVALHO, Salo de. Pena e garantias. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001. p. 12.
[12] FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón...p. 565.
[13] PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório: a conformidade constitucional das leis penais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001. p. 106.
[14] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O papel do novo juiz no processo penal... p. 32
[15] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O papel do novo juiz no processo penal... p.35.
[16] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O papel do novo juiz no processo penal... p. 36
[17] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O papel do novo juiz no processo penal... p. 36
[18] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O papel do novo juiz no processo penal... p. 37.
[19] FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón...p. 566.
[20] FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón...p. 566.
[21] FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón...p. 566.
[22] Arthuro Rocco era, como Francisco Campos, Ministro da Justiça, mas de Mussolini, sendo um dos mais notórios teóricos do fascismo italiano.
[23] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Introdução aos princípios gerais de Direito Processual Penal. In: Revista de Estudos Criminais. Ano 1. Nº 1. Sapucaia do Sul: NotaDez, 2001. p. 28 e 29.
[24] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal e sua conformidade constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 70 e ss.

COLOCANDO O PINGO NO “I” DA ABIN


A Revista Veja, de 03 de setembro deste ano, denunciou ao Brasil que o presidente do Supremo Tribunal Federal estava “grampeado”. Prova disso foi a interceptação do diálogo travado entre ele e um Senador Federal.
Conjecturas conspiratórias a parte, se tal interceptação se concretizou, estamos diante da maior afronta à democracia desde a Constituição Federal de 1988.
Fato é que a ABIN, supostamente responsável por este “grampo”, tem como antecedente histórico o Serviço Nacional de Informações, criado em 1964 como um dos mais importantes aparatos repressivos do “nosso” Estado ditarorial, ao lado dos DOPS e adjacências.
Interessante que os membros da cúpula da ABIN são antigos conhecidos da Polícia Federal. O primeiro do “escalão”, é Delegado há mais de 30 anos, e foi um dos responsáveis pelo grande avanço da Polícia Federal nestes breves anos que vem, notadamente, tomando os noticiários com prisões espetaculosas. O segundo, funcionário público federal de carreira, está há mais de 30 anos envolvido com o serviço de inteligência do governo, seja ele qual for.
O denominador comum entre eles: o tempo. Não é preciso falar onde estava a democracia há 30 anos.
A democracia, como falam Ferrajoli e Bobbio, não é algo pronto, prêt-à-porter, é algo que se vai construindo com o tempo, ou melhor, com os traumas e cicatrizes do tempo.
A ABIN, por si só, já afronta a democracia, haja vista que não há um permissivo constitucional que comporte um órgão estatal com tal poder (vide a Lei 9.883/99 que cria esta Agência e os poderes “gerais” que a ela são outorgados), posto que a segurança pública está disciplinada no art. 144 de nossa Carta Constitucional e ali não há qualquer dispositivo que autorize, ou melhor, legitime, um órgão estatal com a finalidade reputada à ABIN.
Não se está aqui, frise-se, reputando qualquer responsabilidade a estes servidores públicos que, a toda evidência, são probos, corretos. Muito antes pelo contrário.
Falamos aqui, sim, de que a democracia precisa de oxigênio, precisa de pessoas que tenham sido formadas dentro de um paradigma democrático. Que não tenham estudado a “Polaca”, apelido dado à (autoritária) Constituição brasileira de 1937, ou não tenham presenciado e aplaudido o (genocida) AI-5.
Não se clama por jovens, mas por consciência, por “ideologia democrática”.
Reprimir o crime e toda a conduta que afronte a “ordem” constitucional não quer dizer violar garantias, direitos fundamentais, que são a fatura de se viver em um Estado livre e democrático, até porque, violar garantias e direitos fundamentais é a maior afronta que a Constituição Federal de 1988 pode ter.

Rodrigo Mariano da Rocha
Advogado Criminalista, Mestrando em Ciências Criminais na PUCRS

quinta-feira, 26 de junho de 2008

DO SILÊNCIO À CULPA

Artigo

Do silêncio à culpa*, por Rodrigo Mariano da Rocha*

Quem cala consente? Quem não deve não teme? Por que, afinal, existe este "direito ao silêncio", se isso pode ser um empecilho à punição - fazendo com que, por exemplo, uma CPI termine em "pizza"? Ou, resumindo, "se és inocente, por que calas?", parafraseando Nicolau Eymerich, um frei dominicano, autor do livro Directorium Inquisitorum - Manual dos Inquisidores, escrito em 1376 e revisto e ampliado por outro inquisidor dominicano, Francisco de La Pena, em 1578.
Como se vê, esta questão remonta a um passado sombrio, cheio de sangue, fogo e horror. Remonta ao Tribunal do Santo Ofício, à Inquisição levada a efeito pela Igreja Católica - que tinha como "manual" o livro de Eymerich.Isso porque a Inquisição objetivava que o "herege" (hoje, o réu ou, o que é pior, o mero suspeito) confessasse seus pecados e ganhasse com isso a absolvição, a remissão dos pecados, nem que para isso tivessem que utilizar da tortura (que era regra). Esta seria a melhor maneira de se conseguir a tão sonhada "verdade".
Contudo, como refere o processualista espanhol Perfecto Ibañes, nessa época não só crimes/pecados não cometidos foram confessados, como também alguns impossíveis de serem praticados.
Esta breve digressão histórica serve especialmente para pontuar o quão caro foi para a humanidade o "direito ao silêncio" e quanto sangue e horror envolve o seu desrespeito.No atual estágio de democracia e, também, de avanço em matéria de tecnologia ao auxílio das investigações, a confissão, a palavra do investigado/réu é, sem dúvida, uma das provas menos importantes.
Para que é necessária a confissão e a fala de uma pessoa se é possível interceptar suas comunicações (via telefonia, e-mails e mesmo mensagens instantâneas)? Se é possível fazer diversas provas técnicas, por que a confissão, a voz do acusado? Talvez pelo mesmo motivo que levava as pessoas a irem às praças do medievo assistir às fogueiras do Santo Ofício.
O investigado, quando usa a palavra, na verdade está exercendo um direito, que é a autodefesa positiva. Mas, se não fala, também está exercendo outro direito, que é a autodefesa negativa.
Se isso será prejudicial, somente compete avaliar quem o defende. O processo penal e a investigação preliminar são, na verdade, termômetros do nível de democracia e civilidade dos países. E isto importa em respeitar o direito ao silêncio.
Até porque quem não deve teme, e muito.
* Publicado na Zero Hora de 20/04/2008
*Advogado criminalista, mestrando em Ciências Criminais-PUCRS